Ambientalista e professor da UFSC, João de Deus Medeiros é o entrevistado do mês de Fevereiro na série “Craques da Restauração”

João de Deus Medeiros: “mesmo sendo bioma elevado a condição de patrimônio nacional, ameaças à Mata Atlântica persistem”

CRAQUES DA RESTAURAÇÃO: coordenador da Rede de ONGs da Mata Atlântica aponta necessidade de maior comprometimento com a administração da crise climática a partir de iniciativas locais e protagonismo brasileiro. 

Ambientalista e professor da UFSC, João de Deus Medeiros é o entrevistado do mês de Fevereiro na série “Craques da Restauração”
Ambientalista e professor da UFSC, João de Deus Medeiros é o entrevistado do mês de Fevereiro na série “Craques da Restauração”

Sétimo entrevistado da série “Craques da Restauração”, João de Deus Medeiros já atuou como Diretor do Centro de Ciências Biológicas e Chefe do departamento de Botânica na UFSC, foi Diretor do Departamento de Áreas Protegidas e Diretor do Departamento de Florestas do MMA, e também foi Coordenador da Federação de Entidades Ecologistas Catarinenses. Hoje coordena a Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA) e é Presidente do Conselho Regional de Biologia de Santa Catarina (CRBio-09).

A partir da experiência com pesquisa e políticas públicas, João de Deus Medeiros aponta que é necessário e urgente um comprometimento com essas políticas e uma aplicação da legislação já existente para garantir a conservação e restauração da Mata Atlântica em larga escala. Confira a entrevista na íntegra:

Como você se aproximou da restauração ecológica e quais suas principais experiências no setor?

Minha aproximação com a causa da restauração começou com o trabalho no laboratório de sementes florestais nativas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em Florianópolis, no final da década de 1970. Na época, ainda como estudante de graduação do curso de Biologia, atuava no laboratório de sementes que se integrou ao projeto “Nativas Florestais”. Isso gerou a oportunidade de trabalhar com diferentes espécies da Mata Atlântica, buscando estabelecer protocolos de germinação de sementes, quebra de dormência, técnicas de armazenamento e transferir conhecimentos para a produção de mudas de essências nativas da Mata Atlântica. 

Posteriormente, já como professor da UFSC, participei da coordenação do projeto “Sementes Sul”, visando ampliar a difusão de conhecimentos para a produção de sementes e mudas, auxiliando no estabelecimento de uma cadeia da restauração florestal no bioma. 

Ao longo das últimas 4 décadas tenho atuado  tanto na atividade acadêmica quanto na articulação com entidades ambientalistas, notadamente ONGs que trabalham com produção de sementes e mudas nativas, diretamente envolvidas com atividades de restauração. Nesse contexto, particular atenção tem sido dada às espécies florestais ameaçadas de extinção, trabalhando com pesquisas associadas à biologia reprodutiva dessas espécies, como também com atividades de restauração e conservação de populações remanescentes. A restrição a exploração madeireira dessas espécies, a expansão de novas áreas protegidas com populações remanescentes dessas espécies, bem como o desenvolvimento de técnicas para produção de mudas e desenvolvimento de projetos de restauração empregando essas espécies ameaçadas, são alguns exemplos das experiências vivenciadas.

Além disso, tenho acompanhado e avaliado projetos de recuperação de área degradadas, na qualidade de perito judicial, e ultimamente, na condição de Coordenador da Rede de ONGs da Mata Atlântica, tive a oportunidade de conhecer melhor diversas iniciativas de restauração conduzidas pelas entidades da RMA no território da Mata Atlântica. 

O que você espera da Década das Nações Unidas da Restauração Ecológica (2021-2030) na Mata Atlântica e no combate à mudança climática? 

Não tenho grandes expectativas. Apesar de procurarmos vincular essa alusão à Década das Nações Unidas da Restauração Ecológica, percebemos que na prática não tem surtido efeitos sinérgicos. Acreditamos que há um desgaste desse modelo adotado pela ONU, gerando uma sensação de frustração pela baixa efetividade nos resultados alcançados, notadamente considerando os elevados custos envolvidos na manutenção de uma estrutura  meio. No combate aos efeitos da emergência climática que já administramos, isso fica evidente. Os compromissos firmados no âmbito da Convenção Quadro do Clima, não têm sido cumpridos pelas partes, as negociações se prolongam, sucessivas conferências das partes são promovidas sem qualquer sinal de construção efetiva de estratégias capazes de estancar a elevação dos fatores causadores da crise climática, ao contrário, assistimos paralelo a isso uma escalada crescente na concentração dos gases de efeito estufa. Desse modo, a referência a Década das Nações Unidas da Restauração Ecológica, por si só, pouco acrescenta.

Com o agravamento da crise internacional que assistimos hoje, é preciso ter ciência da necessidade de buscar avanços e maior comprometimento com a administração dessa crise climática e da biodiversidade, a partir também das iniciativas locais, e o Brasil precisa assumir seu protagonismo nesse campo, a despeito do fracasso dos acordos internacionais.

Como você entende a conexão entre conservação e restauração no espaço da política pública no Brasil? 

Entendo que há um grande percurso a ser percorrido. O Brasil, apesar de ser um país megadiverso, é um dos que menos investe na conservação da natureza. Temos ainda muito mais recurso público investido em incentivos negativos. As iniciativas para ampliar e dar escala à cadeia da restauração no Brasil são ainda incipientes e tímidas, e sofrem com a instabilidade e morosidade na implementação das ações e programas correlatos. A imensa dificuldade para fazer implantar o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a inoperância por falta de regulamentação do Fundo Mata Atlântica, criado por lei em 2006, são exemplos desses enormes desafios que encontramos para consolidar a política pública de meio ambiente no Brasil. 

A própria estratégia de conservação, mesmo no caso de um bioma tão crítico quanto a Mata Atlântica, é algo ainda muito distante de uma situação razoável. O desmatamento no bioma persiste, com consequente perda de biodiversidade, não raro com aval formal dos órgãos responsáveis pela execução da política nacional de meio ambiente. É absolutamente necessário e estratégico garantir a conservação dos últimos remanescentes bem conservados de Mata Atlântica, como forma inclusive de se projetar alguma possibilidade futura de avanço significativo nos processos de restauração. Mesmo sendo um bioma elevado a condição de patrimônio nacional, detendo uma lei especial para garantir sua proteção e uso sustentável, as ameaças à Mata Atlântica persistem, incluindo ameaças no âmbito do próprio poder legislativo. Hoje existem diversos projetos de lei procurando reduzir a proteção legal da Mata Atlântica, indicando que, mesmo no caso da Mata Atlântica, não há como afirmar que tenhamos uma política pública eficiente e efetiva. A degradação ambiental tem nos gerado incalculáveis prejuízos, e estes tendem a se avolumar com o agravamento da crise climática e de biodiversidade.  

Nesse contexto, a conservação e restauração poderão ter uma maior importância, assumindo maior prioridade nas políticas públicas, mas isso ainda demanda muito esforço, acompanhamento, proposições e cobranças por parte da sociedade organizada.

* A série Craques da Restauração é uma iniciativa do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica para valorização das personalidades ligadas ao histórico e às iniciativas de recuperação do bioma. Siga acompanhando pelos canais digitais do movimento! 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Pacto.

Close Bitnami banner
Bitnami